Extrema pobreza cresce 29% no Rio Grande do Norte

 


Com uma renda mensal de R$ 220, oriunda do Bolsa Família, a catadora de recicláveis Keliane de Lima, de 28 anos, sequer sabe se terá comida para oferecer aos quatro filhos, com idades entre oito e 12 anos, no dia seguinte. Junto ao marido, também catador, e as crianças, há cinco anos ela vive em um barraco de dois vãos com paredes, piso e teto improvisados na ocupação Eleny Ferreira, no conjunto Parque dos Coqueiros, Zona Norte de Natal, onde moram outras 60 famílias. Com a geladeira e o armário vazios, ela depende de doações para sobreviver em meio a fome.

“Até agorinha eu estava pensando no que a gente ia fazer para tomar café. Você acredita? Aqui a geladeira está sem nada”, disse Keliane, que recebeu a reportagem da TRIBUNA DO NORTE na manhã da última sexta-feira. “Ontem (quinta) foi aperreado porque minha irmã está no hospital internada e eu deixei os meninos com o pai deles aqui. Aí ele ligou perguntando se tinha alguma coisa e não tinha. Deixei minha irmã lá e fui para o meio dos conjuntos pedir. Ainda arrumei R$ 3 de ovos, um cuscuz e um tantinho de manteiga. Aí fiz pra eles. E assim vamos levando. Tem dia que a gente pensa até em fazer besteira, mas meu filho de 12 anos conversa muito comigo. Tem sido difícil demais a situação aqui”, relata.

Keliane faz parte de um grupo de 600 mil pessoas que vive em extrema pobreza no Rio Grande do Norte, isto é, 17% da população do Estado, de acordo com um estudo do economista Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Entre o primeiro trimestre de 2019 e janeiro de 2021, o índice da extrema pobreza passou de 13,1% para 17%, um crescimento de 3,9 pontos percentuais, o que significa um aumento de 29,7%. Foi o 6º maior crescimento entre os estados do Brasil, atrás de estados como Roraima (8,7 pontos percentuais); Ceará (4,4 pontos percentuais); e Pernambuco (4,4 pontos percentuais). A pesquisa da FGV traduz em números uma percepção cada vez mais presente nos centros urbanos do RN: pessoas pedindo dinheiro e comida em sinais de trânsito, ruas e supermercados.

Em relação à pobreza, o Rio Grande do Norte chegou a 40,7% da população (o que já inclui os 17% em extrema pobreza). Nesse caso, o Estado teve o 4º maior crescimento entre os estados do Nordeste, atrás apenas de Sergipe; Paraíba; e Pernambuco. O avanço da miséria e da fome foi flagrante em todo o país, uma vez que 24 das 27 unidades federativas registraram aumento da taxa da população considerada pobre ou muito pobre, segundo Duque.

Para definir pobreza e pobreza extrema, a pesquisa utilizou parâmetros do Banco Mundial, que estabelece que uma pessoa é pobre quando vive com até R$ 450 por mês. Já o pobre extremo é o que tem rendimentos mensais de até R$ 150, o que representa R$ 5 por dia. Dentro do universo de 1,4 milhão de potiguares na faixa da pobreza, existem ainda 600 mil pessoas em condições ainda mais vulneráveis, os considerados pobres extremos, como é o caso de Keliane de Lima, que recebe R$ 220 do Bolsa Família. O valor é dividido para seis (ela, o marido e quatro filhos), o que, no fim das contas, representa uma renda per capita  de apenas R$ 1,22 por dia.

O pesquisador da FGV destaca que o cenário de pobreza foi agravado pelo desemprego e evidenciado por causa da pandemia de covid-19, que paralisou o setor de serviços. “Alguns estados foram atingidos mais fortemente, principalmente aqueles que têm um mercado de trabalho muito voltado para os serviços e para o mercado informal, como é o caso dos estados do Nordeste. No ano passado, o auxílio emergencial teve um papel importante na diminuição da pobreza e da extrema pobreza, mas tivemos uma redução nos valores juntamente com uma alta inflacionária, de modo que aqueles que recebem auxílio hoje são muito afetados pelos altos preços”, comenta Daniel Duque.

Grávida de oito meses e com uma filha de dois anos, a catadora de recicláveis Manoelle Cristiny, 23, também vive em um barraco no conjunto Parque dos Coqueiros. Ela sequer chegou a receber o auxílio emergencial e teve o Bolsa Família, no valor de R$ 91, cortado desde março do ano passado. A jovem conta que se separou e não tem ajuda do ex-companheiro para criar os filhos. “Aqui é assim, moro sozinha, às vezes tem, às vezes não [comida]. Meu Bolsa Família foi bloqueado. Quando eu fiz [o cadastro] não tinha minha menina. Tenho o cartão, o Caixa Tem, mas não estou recebendo. A mulher disse que tinha que atualizar, mas só atualizava quando acabasse a pandemia, aí agora não recebo mais nem os R$ 91. Também não posso nem sair para resolver isso porque estou prestes a parir e não tem com quem deixar minha menina. Infelizmente o poder público, nossos governantes, não chegam aqui”, conta Manoelle Cristiny.

Problemas estruturais potencializam pobreza
Do ponto de vista da falta de oportunidades, que acaba jogando potiguares para a informalidade, o economista Cláudio Barbosa destaca que o Rio Grande do Norte ainda não possui capacidade de absorver a mão de obra do estado devido a problemas estruturais.

“Nós somos carentes de infraestrutura, de grandes obras que pudessem empregar essa massa não qualificada e até mesmo a qualificada, que não está encontrando e está caindo na pobreza. Esse é um ponto nevrálgico”, diz. No Rio Grande do Norte, a taxa de desemprego calculada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foi de 16,4%, no trimestre encerrado em julho. O índice é o segundo maior da série histórica iniciada em 2012. O recorde (17,3%) foi registrado no terceiro trimestre do ano passado. Hoje, 238 mil pessoas buscam entrar no mercado de trabalho do Estado. Os dados fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD).

O especialista em gestão financeira pondera também os efeitos da pandemia nas finanças de Estado e municípios. “Esses problemas estruturais atingiram o Rio Grande do Norte em cheio. Fora isso, nós estamos, também a nível governamental estadual e municipal, numa carência de recursos financeiros, haja vista que nós investimos boa parcela dos nossos excedentes para o combate da pandemia”, acrescenta Barbosa.

Para o economista Robespierre do O’, as áreas econômicas mais fortes do Estado acabaram afetadas pela pandemia. “Existe ainda o agravante da pandemia e o nosso estado é periférico e pobre economicamente, dependente das exportações e do turismo, que foram setores muito afetados neste período. No ano passado nós tivemos um auxílio emergencial de R$ 600 e hoje está em R$ 150, então esses fatores acabam contribuindo para que o nosso estado sinta essa crise com mais peso”, explica o especialista, que também é membro do Conselho Regional de Economia (Corecon/RN).

Ao passo da diminuição do Auxílio Emergencial, o Rio Grande do Norte registrou aumento no valor da cesta básica, segundo levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Em agosto, a cesta básica em Natal chegou a custar R$ 508,04, incluindo aumento de 0,30% em comparação com o mês anterior. Ante agosto de 2020, a variação foi de 21,11%. Para efeito comparativo, levando em consideração o valor médio do Auxílio Emergencial 2021 (R$ 262,50), seriam necessárias duas parcelas do benefício para comprar uma cesta básica em Natal.

Expectativa ruim
Na análise do economista Robespierre do O', a tendência é que a pobreza não apresente recuo em 2022. “A tendência da pobreza é aumentar. O país vai ter um crescimento este ano de 5% e o mercado está prevendo para o ano que vem um crescimento do PIB [Produto Interno Bruto] de 1% a 1,6%. Isso já mostra que a gente praticamente não vai ter crescimento. Além disso temos as escolas fechadas ou em uma reabertura tímida. Soma-se a isso uma instabilidade política no país, que acaba influenciando a parte econômica. As declarações recentes do presidente contra o STF acabam criando ainda mais incertezas. A gente fica preocupado”, opina.

TRIBUNA DO NORTE