A cidade do RN que teve 300 alfabetizados em 40 horas por método de Paulo Freire
Por Diego Campelo - todonatalense.com.br -
No ano de 1963 o mundo voltou os olhos para uma experiência educacional realizada no interior do Rio Grande do Norte por meio do método de Paulo Freire. Um grupo de estudantes, a maioria universitários, foi até à cidade de Angicos para fazer um levantamento do universo vocabular da população, ou seja, verificar quais palavras eram mais comuns àquele povo. O objetivo era usar essas palavras para ensinar trabalhadores pobres a ler e a escrever. Aquela experiência, de tão bem sucedida, deixaria o mundo espantado.
Paulo Freire percebeu que adultos tinham enormes dificuldades para aprender a ler, pois os métodos usados na época tinham pouca aproximação com a realidade das pessoas que se propunham ao aprendizado. Foi aí que ele pensou em um método que levasse em consideração a aprendizagem das palavras e de seus significados através do valor que elas tinham no mundo daqueles indivíduos.
Foi com base nisso que, em 18 de Janeiro de 1963, aconteceu o lançamento do projeto com a aula inaugural do “Experimento de Angicos” para 380 moradores. Estavam ali para aprender a ler e a escrever domésticas, operários, trabalhadores rurais, pedreiros, serventes, artesãos, lavadeiras, carpinteiros e tantos outros que formavam a massa trabalhadora daquele município.
Vale destacar que o programa também tinha um viés politizador. A ideia era fazer com que os alunos, em sua maioria adultos analfabetos, aprendessem a ler em 40 horas e, além disso, também se politizassem, o que gerou muita curiosidade do mundo inteiro.
Na época desembarcaram em Angicos muitos observadores, especialistas em educação e jornalistas do Brasil e do mundo, como dos jornais New York Times, Time Magazine, Herald Tribune, Sunday Times, United, Associated Press e do Le Monde, da França.
Professor Paulo Freire em sala de aula
No processo de aprendizagem os trabalhadores aprendiam palavras comuns a eles no dia a dia. Quem trabalhava no campo aprendia a escrever palavras como enxada, tijolo, terra. E, à medida que os alunos fossem aprendendo, o pedagogo que fazia parte do grupo iniciava uma discussão mais crítica com os estudantes. Se o aluno aprendia a palavra “tijolo”, por exemplo, iniciava-se uma discussão do tipo: você usa tijolos para fazer uma casa, mas você tem uma casa própria? Por que não tem? E isso fazia o indivíduo pensar sobre sua condição social.
PRAGA COMUNISTA
Em 2 de abril daquele ano foi ministrada a 40ª hora aula, dada pelo presidente da República, João Goulart, com a presença de vários governadores do Nordeste e de representantes da Aliança para o Progresso. Naquele dia discursou para as autoridades o ex-analfabeto Antônio Ferreira; e a aluna mais idosa, Maria Hermínia, entregou cartas escritas pelos participantes do curso ao presidente.
Na ocasião foi notada a presença do General Humberto de Alencar Castelo Branco, fardado, comandante da Região Militar no Recife, que, ao final da aula, teria dito ao secretário de Educação do RN e coordenador do Serviço Cooperativo de Educação (SECERN), Calazans Fernandes: “Meu jovem, você está engordando cascavéis nesses sertões”.
A discussão do pensamento crítico provocava desconforto nas classes que dominavam o país. Em Angicos, por exemplo, aconteceu a primeira greve em maio de 1963. O movimento grevista foi atribuído ao processo de politização dos trabalhadores e logo foi classificado por fazendeiros como “praga comunista”.
Com o término da experiência saem os resultados da avaliação do aprendizado do experimento de Angicos: 300 participantes são considerados alfabetizados, com 70% de aproveitamento no “Teste de Alfabetização” e 87% no “Teste de politização”, segundo o livro “As 40 Horas de Angicos”, de Carlos Lyra, edição de 1996.
IDEALISMO DE ESQUERDA?
Antes que se comece a falar em idealismo de esquerda, comunismo, radicalismo, etc, é válido lembrar que essa experiência teve o patrocínio do Governo do Rio Grande do Norte e da “Aliança para o Progresso”, programa de origem norte-americana que ajudou a tornar possível o emprego do referido método. Tanto é que em 29 de maio de 1963, em carta a Aluízio Alves, o embaixador norte-americano Lincoln Gordon recomenda que o Programa de Angicos para a eliminação do analfabetismo seja adotado em todos os Estados.
Além disso, Paulo Freire também goza de enorme prestígio em universidades do mundo inteiro, inclusive nos Estados Unidos, que nada tem de comunista. Um levantamento feito em 2016 mostrou que só um livro brasileiro, “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire, entrou no Top 100 dos títulos mais pedidos pelas universidades de língua inglesa consideradas pelo projeto Open Syllabus.
A iniciativa coletou mais de um milhão de programas de estudos de universidades dos Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia para identificar quais são os livros mais solicitados por elas em suas ementas.
Paulo Freire, na mesma escola, 30 anos depois
FIM DO PROJETO NO BRASIL
Uma reportagem feita pelo G1 RN em abril de 2013, quando o projeto completou 50 anos, trouxe depoimentos de personagens que participaram do projeto das 40 horas de Angicos, dentre eles o sr. Paulo Alves de Souza, que na época dessa reportagem tinha 70 anos. Veja o que ele disse acerca do projeto: “aquilo mudou a minha vida, porque quando a gente não sabe ler a gente não participa de nada, a gente não é ninguém”, disse, emocionado.
Maria Eneide foi outra moradora da cidade que participou do projeto. Na época ela tinha 6 anos de idade e ia com os pais dela para as aulas de alfabetização. Embora não fizesse parte do público alvo, ela não era impedida de assistir às aulas. “A partir dali eu tive certeza de que seria professora e hoje dou aula para alunos da educação infantil”, disse, na época, ao G1 RN.
Mas em 1964 teve início no Brasil a Ditadura Militar e todo aquele projeto foi desfeito pelos militares. Paulo Freire foi expulso do Brasil e seu trabalho foi substituído pelo Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), um projeto de alfabetização a partir de práticas tradicionais, como uso de cartilhas.
A partir daí Freire percorreu mais de 50 países, ensinando nos mais importantes centros universitários internacionais, como a Universidade de Harvard. Ele aplicou seu método de alfabetização em nações da Ásia, da África e da América Latina e também tornou-se Doutor Honoris Causa por 28 universidades. Além disso 26 centros de pesquisas em educação recebem o seu nome em países como Brasil, Itália, Chile, Bélgica e Estados Unidos.
Paulo Freire morreu em maio de 1997, e em 2012 foi declarado Patrono da Educação Brasileira.
O documentário abaixo foi produzido na época do projeto pelo Serviço Cooperativo de Educação do Rio Grande do Norte (SECERN). O roteiro é de Luiz Lobo. Assista!