Brasil destrói 128 campos de futebol de floresta por hora
Fiscalização em Rondônia: exploração ilegal de madeira na Floresta Nacional do Jamari (Henrique Donadio/Revista EXAME)
Escondidos no meio da floresta amazônica, nove agentes de fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) aguardam o momento certo para uma emboscada. É noite, e quem garante a segurança do grupo na escuridão da mata são dez policiais que levam a tiracolo fuzis do tipo 762. O objetivo é pegar em flagrante pessoas que exploram ilegalmente a madeira da região. Ainda sob a luz do dia, as provas do crime já haviam sido encontradas: um caminhão carregado de madeira de lei e um trator deixados às pressas para trás quando os criminosos perceberam a presença dos fiscais federais — que chegaram de helicóptero à área de difícil acesso por terra.
Depois de o grupo caminhar sem sucesso por mais de 4 horas na floresta à procura desses madeireiros, a estratégia foi esperar que a carga do caminhão — cinco toras de angelim, árvore utilizada na confecção de móveis e na construção civil — motivasse a volta dos infratores durante a noite. O raciocínio foi certeiro. Na madrugada do dia 29 de abril, três homens tentaram mover o caminhão de um atoleiro no meio da floresta.
O ronco do motor foi o sinal para os fiscais, acampados a 2 quilômetros dali, correrem até o local. A perseguição, porém, durou pouco. A bordo de uma moto e a pé, os madeireiros conseguiram novamente fugir. Antes, porém, sabotaram o caminhão e o trator para impedir sua retirada do local. Alguns dos fiscais tentaram durante horas ligar os veículos, mas não houve jeito. Diante dessa situação, os agentes do Ibama viram-se obrigados a seguir um ritual: em clima de catarse coletiva, incendiaram o caminhão e o trator para impedir a ação — pelo menos por um período — das quadrilhas de extração ilegal de madeira que vêm atuando em regiões virgens da Amazônia. As toras também viraram cinzas.
O episódio, acompanhado por EXAME durante uma operação de fiscalização, ocorreu na Floresta Nacional do Jamari, uma área no norte do estado de Rondônia cujos 220.000 hectares deveriam estar intocados ou sendo explorados de maneira sustentável. Explica-se: nessa mesma floresta fica a operação da empresa brasileira Amata. Ela ganhou do governo, em 2008, o direito de, numa área de 46.000 hectares, explorar a madeira seguindo à risca regras para quantidade e idade das árvores que podem ser derrubadas, de modo a favorecer a regeneração da floresta e sua perpetuidade.
Mas fazer valer o binômio exploração-conservação não está fácil. Isso porque, entre outras razões, a área da Floresta Jamari sob concessão da Amata também está sendo alvo de ataques dos madeireiros ilegais. “Como não temos poder de polícia, relatamos os roubos aos órgãos competentes e esperamos que façam algo”, diz Patrick Reydams, gerente de operações da Amata em Rondônia.
O Ibama está tentando controlar a situação, mas a tarefa tem se provado inglória. A Floresta Jamari não é um caso isolado. Hoje, 12% do desmatamentoregistrado na Amazônia ocorrem em áreas protegidas — fatia que dobrou desde 2008. Na terra indígena dos caxararis, às margens da BR-364, também em Rondônia, as clareiras de devastação em meio à mata fechada impressionam. Em pouco mais de 4 horas de uma difícil incursão em meio à lama deixada pela chuva do dia anterior, as equipes do Ibama apreenderam e queimaram um trator e dois caminhões carregados de madeira da área. “As árvores de valor comercial do entorno estão praticamente extintas. É aí que as áreas protegidas se tornam alvo”, afirma o coordenador da operação acompanhada por EXAME, cujo nome foi omitido na reportagem para sua proteção. Vítimas de ameaças frequentes, os fiscais envolvidos nessas operações tentam preservar a própria identidade.
Os últimos dados do Prodes, sistema do governo que monitora com satélites o desmatamento da Amazônia, mostram que o ritmo de destruição da floresta cresceu cerca de 30% de agosto de 2015 a julho de 2016. Foram quase 8.000 quilômetros quadrados eliminados em um ano — algo como derrubar 128 campos de futebol de floresta por hora, ou uma área equivalente à região metropolitana de São Paulo nesse período. É a maior extensão desmatada desde 2008 na Amazônia Legal. Boa parte do avanço concentrou-se nos estados de Pará, Mato Grosso, Rondônia e Amazonas.
Trata-se de um retrocesso histórico. Em 2004, o Brasil perdeu quase 28 000 quilômetros quadrados de floresta — uma área equivalente à do estado de Alagoas. Dali em diante, até 2014, o ritmo de desmatamento caiu 80%. Em 2015, os satélites voltaram a registrar alta — naquele ano, de 24%. Não foi algo episódico. Em 2016, o incremento de 29% tornou a curva de destruição ascendente. “Tivemos uma redução extraordinária de desmatamento na última década. Mas não podemos mais dizer que o desmatamento da região esteja sob controle”, afirma Adalberto Veríssimo, cofundador e pesquisador sênior do Imazon, instituto de pesquisas sobre a Amazônia.
A região já perdeu quase 20% da cobertura original — o que equivale à superfície de uma França e meia. Estudos apontam que mudanças profundas nos ciclos naturais do bioma, como variação de temperatura e a consequente ameaça à vida animal, podem ocorrer com a perda de 20% a 30% de floresta. Não falta muito para chegarmos lá.
Raízes do problema
A equação por trás dessa retomada não é simples. Para entender o problema, a reportagem de EXAME percorreu 1 418 quilômetros na floresta durante dez dias. E questionou mais de 40 especialistas no tema, entre empresários, políticos, acadêmicos e representantes de ONGs. Um fator preponderante desponta: o enfraquecimento das políticas públicas de comando e controle. Em outras palavras, faltou fiscalização e intimidação ao crime.
O Ibama perdeu 30% do orçamento de 2015 para 2016 e, desde então, vem fazendo malabarismos para diminuir o impacto desse aperto nas operações de campo. “Uma motosserra é capaz de desmatar quase 3 hectares de floresta por dia. Imagine o estrago que grupos inteiros de madeireiros ilegais conseguem fazer ao menor sinal de ausência de fiscalização”, afirma Luciano Evaristo, diretor de proteção ambiental do Ibama.
Em setembro do ano passado não houve um agente sequer em campo. Uma saída encontrada para contornar a situação foi apelar, em novembro, para os recursos do Fundo Amazônia. Administrado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o fundo capta dinheiro para projetos como pesquisa em universidades e planejamento de assentamentos sustentáveis. Mas acabou tendo de ajudar o Ibama a bancar, até o final deste ano, com 56 milhões de reais, algo básico: o aluguel de carros e helicópteros que monitoram a região.
No dia 22 de junho, uma decisão colocou em xeque a perenidade desses recursos. A Noruega, que já fez aportes no valor de 2,8 bilhões de reais no fundo, anunciou que vai cortar pela metade o montante repassado ao Brasil neste ano. Cerca de 200 milhões de reais foram suspensos. A razão: a incapacidade, pelo menos até agora, de o país conter o desmatamento. Hoje, 960 fiscais estão em campo no país, 351 a menos em relação a 2010. O Ibama pediu ao Ministério do Planejamento a criação de 1 500 vagas. Desde 2012, não há novos concursos para a autarquia.
A fiscalização também compete aos estados. Nesse caso, a situação — agravada pela crise — não é melhor. De acordo com a Associação Brasileira de Entidades Estaduais do Meio Ambiente, as secretarias perderam, em média, um terço do orçamento em 2016. Em paralelo, a dinâmica do desmatamento tem se sofisticado. Para enganar os satélites, as quadrilhas preservam as árvores de copas mais altas enquanto derrubam outras espécies. Elas também desmatam pequenos polígonos, e não grandes áreas de uma vez só. É o chamado desmatamento multiponto.
As quadrilhas passaram a desmatar também durante o período chuvoso, quando a dificuldade de se deslocar na floresta é compensada pelas nuvens que prejudicam a detecção pelos satélites. As artimanhas passam até mesmo por contratar profissionais de geoprocessamento. Eles não só monitoram as queimadas para estabelecer pastos após a extração da madeira como também criam registros falsos de áreas invadidas para lhes conferir legalidade.
Um esquema desse tipo foi desmantelado no ano passado pela Operação Rios Voadores, que uniu Ibama, Ministério Público Federal, Polícia Federal e Receita Federal. Na operação, o empresário paulista Antônio Junqueira Vilela Filho e outras 24 pessoas foram denunciados, acusados de movimentar quase 2 bilhões de reais entre 2012 e 2015 com desmatamento ilegal e grilagem de terras públicas para criação de gado no Pará.
Quase 25% do desmatamento da Amazônia ocorre hoje em terras públicas, como as atacadas por Vilela. Nessas áreas, a velocidade de destruição é 60 vezes maior do que a que ocorre dentro de áreas protegidas. Isso porque, apesar de públicas, elas não têm uso definido. Não foram repassadas a produtores nem demarcadas como unidades de conservação ou terras indígenas. Também não são áreas militares nem de pesquisa. Em português claro, são terras de ninguém. Somam cerca de 80 milhões de hectares à mercê de grilagem, ocupações ilegais, degradação ambiental e sangrentos conflitos. É uma extensão equivalente a 20 vezes o estado do Rio de Janeiro — e representa 17% de toda a Amazônia. “Depois de anos de avanços, é um escárnio o que estão fazendo hoje com a Amazônia”, afirma Tasso Azevedo, um dos mais respeitados ambientalistas do país.
Veja na íntegra a reportagem no link http://exame.abril.com.br/revista-exame/brasil-destroi-128-campos-de-futebol-de-floresta-por-hora/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=exame-manual&bt_ee=63L5GABPPh295as6kuWtVgGOUi1nT+URbwRGkFHsxNhOc3bhAFeBYSxeApVhiRRv&bt_ts=1498735612308