Musical 'Elza' chega a Natal para duas apresentações no Teatro Riachuelo



A trajetória de Elza Soares é sinônimo de resistência e reinvenção. As múltiplas facetas apresentadas ao longo de sua majestosa carreira estão em cena no musical “Elza”, no Teatro Riachuelo. Larissa Luz, convidada para a montagem, e outras seis atrizes selecionadas após uma bateria de testes (Janamô, Júlia Tizumba, Késia Estácio, Khrystal, Laís Lacorte e Verônica Bonfim) dividem a missão de evocar a intérprete, através do texto de Vinícius Calderoni e da direção de Duda Maia. Pedro Luís, Larissa Luz e Antônia Adnet assinam a direção musical e o maestro Letieres Leite foi o responsável pelos novos arranjos para clássicos do repertório da cantora, como ‘Lama’, ‘O Meu Guri’, ‘A Carne’ e ‘Se Acaso Você Chegasse’. O projeto foi idealizado por Andrea Alves, da Sarau Agência, a partir de um convite da própria Elza e de seus produtores Juliano Almeida e Pedro Loureiro.
O espetáculo foi desenvolvido, no momento em que Elza se encontra no auge de uma carreira marcada por reviravoltas e renascimentos. Ao lançar seus últimos dois discos, ‘A Mulher do Fim do Mundo’ (2015) e ‘Deus é Mulher’ (2018), a cantora não somente ampliou ainda mais seu repertório e o imenso leque de fãs, como conquistou, mais uma vez, a crítica internacional, e se consolidou como uma das principais vozes da mulher negra brasileira. ‘O espetáculo é uma grande celebração da mulher. É a vez e a voz da mulher brasileira em cena’, vibra a produtora Andrea Alves, responsável por espetáculos recentemente premiados, como ‘Suassuna – O Auto do Reino do Sol’, ‘Auê’ e ‘Gota D’Água [a seco]’.
Vinícius Calderoni, autor do texto, chama a atenção para a coletividade presente em todo o processo de criação da montagem. Após ter escrito as primeiras páginas, ele começou a frequentar os ensaios e estabeleceu um rico intercâmbio com Duda Maia e as sete atrizes. ‘Hoje poderia dizer que elas são coautoras e colaboradoras do texto. São sete atrizes negras e múltiplas, como a Elza é. Diante da responsabilidade enorme, eu estabeleci limites de fala para mim, por exemplo, em relação a alguns temas. Limitei a minha voz e disse que não escreveria nada, queria os relatos delas e as opiniões. Pedi a colaboração delas, das experiências vividas por uma mulher negra. Do mesmo jeito que a Duda propôs muitas coisas, as atrizes também tiveram este espaço’, conta o dramaturgo.
Tal processo colaborativo se estendeu para a música, com a participação ativa das atrizes e das musicistas nos ensaios com Pedro Luís, diretor musical, e o maestro Letieres Leite, que liderou algumas oficinas com o grupo no período dos ensaios. O processo gerou ainda duas canções inéditas que estão na peça: ‘Ogum’, de Pedro Luís, e ‘Rap da Vila Vintém’, de Larissa Luz. Se a escolha de Pedro para a função foi referendada pela própria Elza – que gravou e escolheu um verso do compositor para nomear seu último disco –, Larissa já estava envolvida com o projeto desde o seu embrião.
Uma força arrebatadora, mas sem perder a leveza
As atrizes que vão dividir o palco com Larissa passaram por uma série de audições, em um processo que privilegiou a escolha de intérpretes multifacetadas. Em cena, elas se dividem ao viver Elza em suas mais diversas fases e interpretam outros personagens, como os familiares e amigos da cantora, além de personalidades marcantes, como Ary Barroso (1903-1964), apresentador do programa onde se apresentou pela primeira vez, e Garrincha (1933-1983), que protagonizou com ela um dos mais famosos e tórridos casos de amor da recente história brasileira.
Ainda que muitos dos conhecidos episódios da vida da homenageada estejam no palco, a estrutura de ‘Elza’ foge do formato convencional das biografias musicais. Se os personagens podem ser vividos por várias atrizes ao mesmo tempo, a estrutura do texto também não é necessariamente cronológica. Da mesma forma que músicas recentes (‘A Mulher do Fim do Mundo’, ‘A Carne’, ‘Maria da Vila Matilde’) se embaralham aos sucessos das mais de seis décadas de carreira da cantora, como ‘Se Acaso Você Chegasse’, ‘Lama’, ‘Malandro’, ‘Lata D’Água’ e ‘Cadeira Vazia’.
Marcada por uma série de tragédias pessoais – a morte dos filhos e de Garrincha, a violência doméstica e a intolerância –, a jornada de Elza é contada com alegria. Foi este o único pedido da própria cantora:
‘A Elza me disse: ‘sou muito alegre, viva, debochada. Não vai me fazer um musical triste, tem que ter alegria’. Isso foi ótimo, achei importante fazer o espetáculo a partir deste encontro, pois assim me deu base para saber como Elza se via e como ela gostaria de ser retratada’, conta Vinicius, que leu e assistiu a infindáveis entrevistas que a cantora deu ao longo da vida e também pesquisou a obra de pensadoras negras, como Angela Davis e Conceição Evaristo, cujos fragmentos de textos aparecem na peça.
‘Apesar de uma força arrebatadora, Elza tem muita leveza. É divertida. Mais do que nos pedir qualquer coisa, deixou claro que sua história é marcada por uma força absurda de viver. Que, apesar de tudo, tem garra, tem amor, tem opinião’, completa a diretora, que comandou o grupo por oito horas diárias de ensaio, durante os últimos três meses.
A sintonia de um encontro teatral
‘Elza’ marca o encontro da dramaturgia de Vinícius Calderoni com a direção de Duda Maia, dois nomes que se destacaram no recente panorama teatral brasileiro. Pela direção de ‘Auê’ (2016), estrelado pela Cia. Barca dos Corações Partidos, ela conquistou os prêmios Shell, Cesgranrio e Botequim Cultural de Melhor Direção, além dos prêmios APTR e Cesgranrio de Melhor Espetáculo e o Bibi Ferreira de Melhor Musical Nacional. Enquanto isso, Vinicius já ganhou o Prêmio Shell de Melhor Autor por ‘Ãrrã’ (2015), o APCA por ‘Os Arqueólogos’ (2016) e coleciona outras indicações e troféus por espetáculos da companhia Empório de Teatro Sortido, que lidera ao lado de Rafael Gomes.
Em paralelo à carreira de escritor, Vinícius é também músico – ele integra a banda 5 a seco e tem dois discos lançados – e ator. A experiência musical foi determinante no processo de criação do texto. ‘Desde pequeno quis ser letrista, gostava de escrever letras de canção. Quando escrevi o musical, eu me guiei pela sensação de letrista, escolhendo o tamanho das frases e a sonoridade rítmica delas’, conta o autor.
Já Duda trouxe todo o seu reconhecido trabalho corporal para o desenvolvimento da linguagem da encenação. ‘Eu e corpo somos uma coisa só, ele é minha religião. Para mim, não existe palavra sem corpo, a dança é meu começo, meio e fim. Esse grupo de atrizes é muito forte, elas mergulharam de cabeça nessa ideia’, ressalta a diretora.
A sintonia entre eles e Pedro Luís (diretor musical) foi determinada por uma característica fundamental no trabalho dos três: a escuta e a participação das intérpretes. ‘Foi um processo de ensaios muito vivo, em que partimos do princípio que a voz não é nossa, é das atrizes. Fizemos este trabalho para elas e a partir de propostas delas também. Precisamos olhar para o grupo, para a troca’, conta Duda, ressaltando que tudo só foi possível graças à parceria com a Sarau, produtora capitaneada por Andrea Alves.
Nos últimos anos, a Sarau foi responsável por grandes momentos do teatro nacional, como as montagens de ‘Gonzagão – A Lenda’, ‘Ópera do Malandro’, ‘Auê’ e ‘Suassuna – O Auto do Reino do Sol’, da Cia. Barca dos Corações Partidos, e ‘Gota D’Água [a seco]’, dirigida por Rafael Gomes e protagonizada por Laila Garin. Sempre comprometida com a cultura nacional em seus mais variados aspectos, a produtora também assina a direção do Festival Villa-Lobos e do Toca, evento que teve a primeira edição neste ano e trouxe a canção brasileira para o centro da discussão, através de shows gratuitos, oficinas e debates.